quinta-feira, outubro 07, 2010

Como dobrar uma palmeira

A paz invadiu o meu coração, de repente meu encheu de paz. Cantarolava essa música enquanto fazia uma faxina em casa. Havia já um tempo considerável que as paredes da nossa casa não estremeciam.  Perguntava-me por quê? Meu marido diz que sou quem desperto nele os mais maliciosos instintos, tanto no bom quanto mau sentido. Vejamos esse raciocínio: sendo a premissa A verdadeira (todas as brigas são provocadas por mim), tanto quanto a proposição B (não estamos brigando nesse exato momento), logo podemos concluir que eu estou tranquila. Será?

Digamos que foi feita uma retirada estratégica. Temos uma questão em aberto. Se você remexer na sua relação, também vai encontrar alguma coisa com cheirinho desagradável debaixo dos panos. Mas pra que ficar esmiuçando se tá tudo bem. Meu pai dizia "não escarafunche muito para descobrir sobre seus antepassados, senão vai achar um ladrão de cavalos no meio deles". Então vamos todos sorrir para a foto final. Que família feliz! Senhores e senhoras, peço gentilmente para abaixarem as bandeiras da hipocrisia. Caso desconheçam. O aparente fingimento é uma tática de camuflagem muito usada no mundo animal.


Exemplificando: se ele diz que o discurso está encerrado. Apenas concorde. Bater de frente é ineficaz. Visualize um cabo de guerra. A ponta sendo arrastada será a sua quando o embate for decretado.  Respire fundo e se mimetize na esposa dócil e submissa. Depois, enquanto lava os pratos ou limpa o banheiro planeje uma operação discursiva que o conduzirá ao erro. Nada de falácias, só argumentos dedutivos. Já recorri a metáforas da nossa fauna para ilustrar o casamento. Aqui vai mais uma: pense que as palmeiras nasceram fortes e eretas, mas o vento consegue dobrá-las.

(Ao verdadeiro autor da frase, perdoe-me pela livre adaptação.)

quarta-feira, outubro 06, 2010

Um excêntrico desdém

Devo confessar uma coisa. Tenho um sério distúrbio relacionado a fechamento. Explico: não fecho completamente as tampas, ao mesmo tempo não suporto portas abertas. Parece uma contradição, mas é verdade. É motivo de várias desavenças na minha casa. Deixo a garrafa mal tampada e o primeiro que a pega pela boca, sempre meu marido, deixa cair e esparrama seu conteúdo pelos quatro cantos do universo. Acontece com outros recipientes: creme dental, perfume, potes de mantimentos. Enfim qualquer frasco cuja abertura seja aquele complicado sistema de enroscar. Mas que bobagem é essa que estou escrevendo?

Paciência que já, já atravessamos esse mar de nonsense e chegamos a uma ilha mais elucidativa. Segure firme na minha mão. Para compensar essa deficiência com aberturas, me dá nos nervos portas escancaradas. Isso inclui quartos, armários, guarda-roupas. Não consigo dormir se uma gaveta estiver aberta. Por onde passo, vou trancando tudo. Acho que o som da fechadura apazigua o espírito aflito, aprisiona toda a confusão da alma. É poético, mas meu marido chama de esquisitice. Vive fazendo imprecações contra o que eu própria classifico como excentricidade. Um dia a praga pegou.

Chegamos ao ponto. Uma historinha curta. Atrasados para uma festa. "Onde está o cortador de unha? Ali, atrás do hidratante de uva". Preâmbulo de uma catástrofe. Vi um pote entreaberto escorregando, um líquido pastoso alçar vôo do chão e aterrissar numa pista alvinha. A camisa branca com poás violáceos foi só o começo. Minutos depois, na saída. "Cadê as chaves do carro? No... chaveiro de casa. Na... porta da frente. Pelo lado de... dentro!"  E o tempo fechou. Bem, diante de um homem convicto da sua ira, apenas desdenhe. Em pensamento, claro. "Não tava a fim de ir na festa mesmo".

terça-feira, outubro 05, 2010

Por que acreditamos?

Às vezes repetimos determinado comportamento na vã esperança de que resulte em alguma coisa. Tomamos vitamina C quando já estamos gripados. Continuamos a comprar creme anticelulite mesmo sabendo que ela nunca nos abandonará, e ainda fazemos ou ouvimos promessas do tipo “não mais agirei dessa forma”. A confiança na mudança é limitada, mas existe. Um bocejo, caro leitor? Contenha-se, por favor. Sei que é um argumento trivial, mas é difícil resistir. Pra animar um pouquinho a platéia, cantem comigo Eu não quero dizer, nem quero acreditar que vai ser diferente, que tudo mudou...

Canções inesquecíveis à parte, a situação mais comum para fajutos juramentos num relacionamento é depois de um grande derramamento de lágrimas. A paz precisa ser selada. Faz-se um tratado em que ambas as partes se comprometem a ceder milímetros no seu egoísmo em benefício do amor comum. Ah, se bastasse... Os vícios do homem e as vicissitudes da vida impedem que os acordos sejam cumpridos. Veja o caso de N. O governo é o culpado pela sua infelicidade. O marido torra o salário nas slot machine, depois garante que é a última vez. Mas a ineficiência na repressão aos bingos clandestinos corrompe o rapaz.

Tão desnecessária quanto a promessa é a pergunta que faço ao desabafo da minha amiga "E você acreditou nele?" Conselho antes da aplicação: faça como uma provocaçãozinha inofensiva ou perderá a amizade. Sem muitas delongas sobre o assunto, por si só demasiado enfadonho, podemos sintetizar que se pode tirar proveito até da inutilidade. Olha a sua volta, há alguma coisa na sua casa que não serve a um belo nada, mas você conserva esse objeto supérfluo. E ainda sonha com o dia, a despeito de todas as prerrogativas em contrário, em que ele mudará de posição.

segunda-feira, outubro 04, 2010

Nunca te falei pra não te ofender


A frase acima pode até vir acompanhada de uma voz melíflua, mas nunca será açucarada o suficiente para esconder a judiação. Quando é introduzida no meio de uma guerra declarada, o efeito não é tão desastroso. É tomada apenas como mais um ataque. O estrago maior acontece num momento inesperado. Tipo uma manhã de domingo, entre o pãozinho com manteiga e o café quentinho. A xícara pára no ar aguardando a continuação da conversa. Ele reflete um pouco. Você se sente desprevenida, desarmada. E repassa todos os seus grandes defeitos. A depender da pausa, dá tempo para rever também as pequenas e secretas falhas, aquelas nunca ditas.

De certo, algum leitor já aplicou essa tática ou foi submetido a um artifício semelhante. É da série “a mão que afaga é a mesma que apedreja”. Um estratagema oportunístico. Basta esperar, e a convivência lhe fará conhecer todo os pontos fracos do inimigo, então é só usar quando convém.  A sabedoria está na sutileza. O primeiro mundo em termos de briga entre marido e mulher, pra não dizer que é uma forma bem civilizada de sadismo. Quando aconteceu com a inocente da minha prima N., ela pensou ter ouvido como continuação do discurso somente um comentário despretensioso sobre sua massa corpórea e respondeu candidamente: "Faço academia só para passar o tempo. Não sou gorda". Pobrecinha!

O deleite em fazer sofrer pisando bem na ferida há diversas causas. Vingança, complexo de inferioridade, perversão sexual. Como disfarçar? A retórica, nesse caso, é essencial. Diga que está apenas expressando sua opinião. É importante preservar a individualidade. O casamento não é uma mordaça para idéias em contrário. Por falar em silêncio, o meu acabou. Depois de um pigarro para disfarçar o embaraço, seguiu o deboche: "não é educado bocejar sem tapar a boca". Como revidar sem parecer insultada ou embaraçada?  Paciência, aguarde a sua vez.

domingo, outubro 03, 2010

Relacionamento alterado: sabor muda de doce para amargo


O PROCON avisa: o idílio tem data para terminar. Quando vencido, o produto é inadequado para consumo e deve ser substituído. Por um átimo, o conselho eclodiu na minha mente. Fazia poucos instantes que tinha conhecido o jovem casal. Eram clientes do meu marido. Por isso, segurei o comentário cínico. Fugazes pensamentos maliciosos, deixo eternizados no blog. Com o anonimato, fica mais difícil indenizar perdas e danos a um leitor.

De sorriso complacente, observava os dois. A troca de afagos, a voz meiga. Todos já passamos por isso. E quanto dura? Meses, poucos anos. Há vários fatores que influenciam o processo de envelhecimento do afeto. No meu caso, possivelmente foi um acidente. Começou com uma viagem. A despedida foi banal, sem lágrimas. Havia uma urgência em partir. Tantas bagagens. Uma preocupação com o mau tempo. Meu mal-estar típico. Hora do dramim. Últimas recomendações. Um breve beijinho e tchau. Partimos. Cada um no seu rumo. O carinho, empurrado pela pressa, caiu e foi atropelado.  Mal curado, nunca mais se recuperou.

Ei, estranhou o parágrafo anterior? Quem vos escreve é a mesma pessoa.  Aproveitei a folga da ironia para passear um pouquinho pelo lirismo. Na verdade, toda essa tapeação é uma tentativa de explicar o meu impaciente comportamento. Talvez o adjetivo mais apropriado seja agreste. Meu marido prefere outros que não vêm ao caso.  A princípio joguei a culpa para os hormônios. Depois percebi que era hora de trocar minha carteira de boa moça. Renovei minhas promessas de praticar somente o bem, a exceção, claro, era continuar escrevendo. Raspei a crosta de bolor que se formava no meu relacionamento. Por baixo, não tinha se deteriorado de todo. Provei. O gosto era bom. Ainda dá pra aproveitar bastante.

sábado, outubro 02, 2010

Fazer (de) conta

Poucos instantes antes de pronunciar o impaciente sim, as mãos se entrelaçam e o padre começa a benção do matrimônio já questionando"Você aceita como seu legítimo esposo..." Nessa hora, o que passa pela cabeça da noiva? "Tá dando pra ver minha barriga?" ou s"erá que meu dente tá sujo de batom?".  Muitas nem se lembram. Eu, sim. Pensava na conta do bufet. Tinha presumido que 20% dos meus convidados não viriam. Era véspera de feriado, poderiam estar na praia. Ao contrário, preferiram uma divertida festa de matrimônio. Tão divertida que chamaram mais amigos.

Minha primeira opção para arcar com as despesas era adotar o costume europeu de receber envelopes com cheques gordinhos em vez de jogo de pratos. Ninguém aceitou. Oh povinho provinciano! A segunda alternativa era pegar o microfone e mudar o discurso: "se alguém aqui presente tem um motivo, por menor que ele seja, para duvidar da proc"edência dos salgadinhos pode sair agora". Faltou coragem, mas sobrou premonição. Intuí que calcular débitos em um momento sacro não traz bom augúrio para a saúde financeira do casal. 

E de fato aconteceu. Meu marido passa longe de ser parcimonioso com as despesas domésticas. Há tanta fixação em gastar nosso suado dinheirinho que desconfio que queira pagar pra ver se cumpro a promessa de lhe ser fiel na pobreza. Com isso, desenvolvi um instinto de sobrevivência para usar sempre que ouço a frase. "Amor, o que você acha d’agente comprar"... Por favor, não me vejam como uma mesquinha sem coração.Tenho pavor de terminar como minha amiga M. Casada há quatro anos, mãe de três filhos, sendo dois gêmeos. Ela trabalha como caixa. Ele, esvazia o caixa. Fazer de conta que contas não existem é a sua especialidade. Por que tolerar um esbanjador? "Serve como babá e empregada,mas sem direitos trabalhista".

sexta-feira, outubro 01, 2010

A sabedoria do acaso



Hoje começa uma nova etapa na minha vida de casada. Vamos reformar a cozinha. Um casal que decide passar por uma experiência semelhante há somente um pensamento: tornar mais cômodo, mais aprazível um lugar da casa. Nenhum dos dois escreveu uma carta ao Senhor, pedindo para passar por uma dura prova a fim de verificar a solidez do seu relacionamento. Mas sobreviver a uma casa em obras não é pra qualquer um. Imagine a sua paciência sendo portada ao altar de sacrifícios, torturada pelo pedreiro, pela sujeira, pela enésima comida semi-pronta do microondas. Como se não bastasse, haverá uma pessoa lhe lembrando a todo momento que foi você quem insistiu pra fazer aquela porcaria de reforma.

Depois de polemizar sobre cor, formato, tamanho, preço, fomos escolher o granito da bancada da pia. Na marmoraria, tivemos de esperar. Uma senhora recém viúva escolhia a lápide do seu defunto. Quanto zelo! Era de enternecer o coração como se dedicava à tarefa de decidir qual pedra era mais bonita. Com a epígrafe foi mais rápida e a meiguice terminou ali.  “Marido infiel, pai ausente, mas felizmente homem de pouco saúde”. Naquele momento, o destino me sorriu.Que belíssimos ensinamentos pode trazer um encontro fortuito.  Só posso dizer que a paz voltou a reinar majestosamente na minha casa até o último revestimento da parede ser colocado.

Útil dizer que não somos supersticiosos, pé de pato, mangalô, três vezes. Se falar sobre o assunto pode não ser auspicioso, pelo menos no dia teremos um problema a menos para resolver. Assim, decidimos qual seria a definição que cada um carregaria pela eternidade. A minha seria espirituosa: “morreu sem ter usado um Manolo Blahnik”. A dele, no seu entender, mais autêntica: “nunca escreveu um blog”.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...